quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O parto da Moleira

O Fartura, moleiro de profissão nos Moinhos da Coruja, era pessoa de reles nomeada.
Chamavam-lhe assim por ironia cáustica, visto que de suas portas adentro sempre reinou a miséria, perpetuada por herança paterna. Ele próprio era a imagem da fome: meão de corpo e seco de carnes, de olhos avinagrados sumidos nas órbitas, cobriam-lhe o toutiço umas farripas de pêlos eriçados, ressumando carências. Tinha um génio assomadiço, que explodia por vezes em fúrias selváticas, ímpetos que ele acalmava sovando desalmadamente a mulher e os filhos. De igual trato padeciam os burricos, que diariamente alombavam os taleigos da farinha, encosta acima, a caminho da Terra-Chã. Duma vez, na ladeira das Rodelas, a um jerico famélico que se aninhou no trilho com peso da carga, e não pôde mais erguer-se, por falta de forças, ali mesmo lhe espetou uma navalha no pescoço, e escoiçou o sangue. A selvajaria deu brado e até meteu Justiça...
O demónio! Este Fartura.
Entretanto, no convívio com estranhos, ou comparsas de taberna, era cortês e de boas falas. Naquela manhã em que me bateu à porta vinha manso como um cordeiro:
«Senhor doutor, venho aqui para vossa «incelência» ter o incómodo de ir ver a minha mulher que está para dar à luz. Deu-lhe uma «coisa»: começou, com sua licença, a escoicinhar com os pés e as mãos, a revirar os olhos, e a escumar da boca... E ficou-se a roncar... Sem dar acordo de si...»
Já sei. Eclâmpsia.
Vamos lá.
E acompanhei o moleiro até aos Moinhos da Coruja, que ficam a montante da Ponte Nova na margem direita do Alva.
Pelo caminho o Fartura foi desfiando o seu rosário de desgraças: - «Duas ovelhas mortas com baceira; um suíno - com sua licença! - enterrado com malina; as «recolhenças» perdidas; e agora, a minha mulher...
É assim a vida dum pobre!
Só desandanças, senhor doutor! Só desandanças!...
Não me alembra dum Samiguel tão escasso...»
A residência era por cima dos moinhos. Por baixo, tamborilavam as mós e rugia o açude. Encontrei a moleira em coma profundo, estendida sobre uma cama, que ocupava por completo o cacifo de dormir.
Uma saleta contígua, que também servia de cozinha, era o único campo de manobra ao meu dispor. Enquanto os ferros fervem na lareira ao lado, observo a parturiente e ausculto o feto.
Este, manifesta sinais de sofrimento intenso. Para o salvar era preciso agir depressa. Duas mulheres que ali aparecem, por caridade, servem-me de ajudantes.
Com a rapidez possível, aplico o fórceps e extraio um cachopo em síncope, que consigo reanimar. Eu próprio o lavo, preparo, e deito ao pé da mãe, que continua em coma.
Regresso a casa com meia batalha ganha, mas preocupado. Nessa noite, pouco dormi, a pensar na moleira...
De manhã, volto aos moinhos, e encontro-a no mesmo estado. E o pequenito, a quem eu já queria bem, abandonado a um canto, embrulhado nuns trapos, quase morto.
Apercebo-me do que lhe iria acontecer e tomo uma resolução: meto-o debaixo do sobretudo e levo-o para minha casa, de presente a minha mulher, que o acolhe com alvoroço e simpatia.
Estávamos casados havia pouco tempo, e ainda não tínhamos filhos. Se a moleira morresse, seria aquele o primeiro, adoptivo. Deitámo-lo no nosso quarto. E entregue aos desvelos da minha mulher, o Farturita começou a agarrar-se à vida.
De noite, quando nos acordava a choramingar, eu dizia: - Quem sabe! Pode estar aqui um santo, um sábio, ou... um ladrão!... Seja o que for, tem o direito de viver. E viveu!
As minhas visitas aos Moinhos da Coruja prolongaram-se por uma semana, para tratar da moleira, injectar-lhe soro, tentar salvá-la. No sétimo dia, quando eu acabava de lhe injectar uma dose de soro, a mulher entreabre um olho, depois o outro, fita-me, e numa voz que parece vir do outro mundo, pergunta:
- «Quem é?»
- Sou o médico.
- «Ai!...»
E começa a palpar-se no ventre, que encontra diminuído, vazio...Conto-lhe o que aconteceu...
A moleira continua a palpar, agora na cama, dum lado, do outro, como quem procura alguma coisa, e a soluçar exclama:
- «E o meu filho! Morreu?»
- Não. Está em minha casa.
- «Ai!... Sim! Sim! No cemitério...»
- Não. Amanhã trago-lho.
No dia seguinte, levo o petiz à moleira. Esta, agarra-o, beija-o, mete-lhe a teta na boca, e aperta-o contra o coração, num íntimo abraço de duas vidas que acabavam de vencer a morte!
O Fartura, aproxima-se de chapéu na mão, e declara solenemente:
- «Senhor doutor, nem de rastos como as cobras posso pagar o que lhe devo! E sobre todos os favores, ainda quero pedir-lhe mais um: - Há-de ser o padrinho do cachopo.»
Fui efectivamente o padrinho e a minha mulher a madrinha. Contra a minha vontade, puseram-lhe o nome de Vasco.
Deveria ser Moisés!...
E assim saldou o Fartura a conta dos meus serviços...

Vasco de Campos - Serra, caminhos de um médico

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