Janeiro de Cima. Os dias, semanas e meses eram do ano de 1965.
Em frente da casa da avó da Eira. Uma fotografia. A marca do tempo.
O meu avô José Fernandes, o primeiro a contar do lado direito.
A minha querida avó da Eira, Maria de Jesus - a segunda a contar da esquerda na fila de trás.
Tias, tios, primas e primos.
A minha madrinha Rosa Fernandes.
A sombra no chão da enorme figueira, que marcou o tempo de cada um.
Tive o privilégio de ali ter estado algumas vezes com a minha avó, bondosa senhora de postura terna, amável e acolhedora.
Nunca se tinha visto na aldeia uma coisa assim. A saída de uma família inteira para outra aldeia de outro Concelho.
O tio César resolveu vender tudo, casa, terras, oliveiras e castanheiros e abalou com a sua mulher a tia Maria Trindade, sua filha Maria de Jesus e seu genro José Fernandes e cinco netos todos ainda menores para uma terra estranha, Janeiro de Cima do concelho do Fundão.
No largo da Eira estava toda a povoação a despedir-se dos vizinhos que partiam. Nestes momentos, há sempre algumas lágrimas, gente que chora com saudades dos que partem, e os que partem com saudades dos que ficam. Um carro de bois estava carregado com os poucos tarecos, roupas e alguns proventos para fazer face aos primeiros meses da numerosa família de nove pessoas.
Então o tio César Joaquim, homem firme nas suas decisões vendo que a despedida se estava a tomar difícil e penosa com choros e lágrimas, disse para o homem do carro de bois que alugara e onde já estavam sentados os seus jovens netos:
- Homem, toque lá os bois que nós não vamos para nenhum enterro, vamos para uma terra mais produtiva e melhor de cultivar que esta...
E lá partiram, deixando e levando muitas saudades da sua terra natal. Esta partida foi nesse distante mês de Janeiro do ano de 1932 e ainda hoje é recordada com saudade por aqueles que a viveram.
Em Janeiro de Cima o tio César e família instalaram-se na grande casa da Eira, numa suave colina donde se vê toda a povoação. Era um sítio e privilegiado. Ali ao lado, a capela da Senhora do Livramento cuja grandiosa romaria é sempre no terceiro Domingo de Agosto. Lá mais no alto no cabeço arredondado existe outra ermida, a de S.Sebastião.
A povoação de Janeiro de Cima era bastante populosa a espraiar-se numa extensa planície rodeada de frondosas e bem cultivadas oliveiras, belas hortas onde o milho, o feijão, a batata e a couve enchiam a vista. Para lado Sul, corriam as águas do rio Zêzere, no Inverno mais furioso e cachoeiro e no verão mais lento, fazendo rolar as azenhas e as rodas de tirar água. Estas rodas são engenhos com púcaros cuja água segue por uma levada até á represa. Esta depois de cheia serve para regar os verdes milharais dos férteis oldeiros.
A laboriosa família tinha de trabalhar, cultivar as terras que comprara, tinha que se integrar no ambiente de uma terra estranha, de gente pouco comunicativa, pouco aberta, como era a gente do rio. Tinha de executar e aprender novas técnicas de cultivo, porque “cada terra com seu uso cada roca com seu fuso”. Tinha de enfrentar um clima bastante mais quente, porque aqui já se faz sentir o bafo escaldante da Cova da Beira.
Tiveram que refazer uma casa agrícola, podar videiras, limpar oliveiras, reparar levadas e paredões dos lodeiros, comprar cabras e ovelhas, porcos e galinhas, para fazer o estrume, montar no Verão as rodas no rio, lavrar as terras, enfim fazer todas as tarefas que são necessárias na agricultura.
Mas para o tio César Joaquim e sua família, o trabalho não lhes metia medo. O tio César era homem corajoso, já tinha ido durante mais de trinta anos com seu pai e irmãos para a região de Badajoz para a ceifa. Era obra!.
Quantos trabalhos e privações não passaram estes pobres homens nestas distantes deslocações feitas quase sempre a pé, longe da sua terra e da sua família? O trabalho não assustava o tio César Joaquim, habituado sempre ao trabalho duro de Sol a Sol, por isso, atirou-se com unhas e dentes às tarefas agrícolas para que nada faltasse à numerosa família, e em poucos meses, pelo São Miguel a sua mesa já era farta. Não faltava pão com abundância, o feijão, a batata, o queijo a fruta e outros mimos.
Em poucos meses, a família da casa da Eira era vista com respeito e com alguma admiração pelo seu trabalho, pelo trato afável, pela sua alegria de viver, pela sua caridade em dar aos pobres que lhe batiam à porta, e eram muitos. A povoação estava sempre ciosa a bisbilhotar o trabalho e o viver da gente da Eira que chegou de outra terra que não conheciam nem tinham ouvido falar.
O tio César, o velho timoneiro - da família, firme no seu posto, não tinha um momento de descanso, sempre a trabalhar sempre na lida para que nada faltasse à família. Os netos e as netas lá iam trabalhando também, e os mais novos, frequentavam escola local, e iam dando boa conta de si perante a alegria do avô César e dos pais José Fernandes e Maria de Jesus. A tia Trindade na lida da casa era a personificação da bondade e de uma verdadeira santa do lar.
À noite, depois de um dia de trabalho árduo, a reza era ponto de honra. Todos mesmo cheios de sono rezavam e davam graças ao Senhor. Ali mesmo ao lado a Senhora do Livramento escutava todas as noites atentamente o que aqueles filhos lhe pediam em fervorosas orações, e não deixava certamente de lhe dar a sua bênção protectora.
Eram santos a rezarem a outros santos bem abençoados os puros do coração que sabem ser gratos a Deus. Eles entrarão triunfantes no reino de Deus.
O tio César, bastante cedo foi chamado para o reino dos justos, com grande pesar e consternação de toda a numerosa família.
Agora quem ia tomar o leme embarcação era o seu genro José Fernandes pai de oito filhos, homem também trabalhador, de fino trato, inteligente, culto, estudioso e de larga visão das coisas e situações.
José Fernandes, devido à sua honestidade e bondade soube conquistar amigos e integrar-se perfeitamente nos problemas da freguesia e nas suas instituições, chegou mesmo a ser durante vários anos presidente da Junta da Freguesia e também alguns anos mordomo das festas religiosas que se celebravam na freguesia.
A sua esposa, Maria de Jesus, foi uma verdadeira santa, uma luz que brilhou sempre na Eira. Nenhum pobre, e eram muitos que ali iam pedir esmola, ficam sem uma dádiva, uma palavra de conforto, um sorriso, uma esperança...
Maria de Jesus, foi também a personificação de uma verdadeira esposa e mãe. Conservou sempre uma postura terna, amável e acolhedora até ao fim da vida, e nunca esqueceu as virtudes que levou da sua aldeia de Ceiroquinho escondida entre serranias. Carinhosa, conciliadora, alegre, conselheira, piedosa...
O seu coração era um mar bonançoso.
A família Ceiroquinhense composta por nove pessoas que um dia chegaram a Janeiro de Cima multiplicou-se, hoje, já na terceira ou quarta geração, com algumas dezenas de pessoas, filhos, netos, bisnetos e trinetos tem trabalhado honradamente para o engrandecimento dessa terra airosa, que é Janeiro de Cima, honrando também os seus progenitores César Joaquim e a tia Preciosa Pereira Maria Trindade e José Fernandes e Maria de Jesus que já partiram para o Céu.
Contos - António Jesus Fernandes